sábado, 15 de junho de 2013

EUROPA


«Nestes últimos anos, aqueles que se distinguiram por conhecer as coisas das nações, como dizia o velho escriba egípcio do tempo de Tutmés III, recomeçam a inquietar-se, a levantar o gesto de Cassandra, a gritar sombriamente: - «A situação da Europa é medonha! Sob as crises que a sacodem, toda a máquina se desconjunta! Nada pode deter o incomparável desastre! Este fim do século é um fim de mundo.» E com efeito, se a tão prolongado e triste brado o homem que trabalha, quieto na sua morada, repara mais atentamente na Europa, ela aparece-lhe como uma sala de hospital onde arquejam e se agitam, nos seus catres apertados ou largos, os grandes enfermos da civilização! (...)
Mas mesmo para um humanitário, para um filósofo (sobretudo para esses que vêem mais longe que o curto espaço duma duração de homem) não há neste fim de mundo nada que desole ou mate a esperança. A situação da Europa de facto nunca cessou de ser medonha. Tem-no sido melancolicamente e apaixonadamente todo este século. Foi-o durante todo o século 18, através da maior indiferença e duma maior doçura de vida. Tem-no sido em todos os séculos desde que os Árias aqui chegaram, cantando os Vedas e empurrando os seus rebanhos para Oeste. A "crise" é a condição periódica da Europa.»
(«A Europa» em Almanaques e outros dispersos, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011.)

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A Inglaterra e a França

A Inglaterra e a França (julgadas por um inglês)

"D. José", o cão pug-carlin do narrador, escreve uma carta à gata "Pussy":
«Nós em Inglaterra afirmamos, com a Bíblia apertada contra o coração, e a garrafa de gin escondida debaixo da mesa, que a moralidade dos nossos costumes é superior à de todas as nações do Universo. Tu sabes, "Pussy", como esta pudica afectação nos parece divertida a nós, cães e gatos, testemunhas permanentes da vida íntima, diante de quem os seres racionais, no seu imbecil orgulho e supondo que somos mudos não se dão ao incómodo de ter recato... A Inglaterra é uma pocilga de devassidão. A França é um salão de libertinagem. "Pocilga", "salão", a diferença está aqui. O pecado entre estes amáveis franceses, é amável também; doura-o um estouvamento moço; tem no fundo uma ponta de sentimento ou de sensibilidade; e no beijo mais superficial há sempre bastante emoção para, sendo necessário, fazer uma lágrima. Em Inglaterra o pecado é bruto e cheira a aguardente.» (em Almanaques e outros dispersos, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011)

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Portugal



« - Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes Ramires. E sabem vocês, sabe o Sr. padre Soeiro quem ele me lembra?
- Quem?
- Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Sr. padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?
- PORTUGAL.
(em A Ilustre Casa de Ramires, 1900)