segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ano Velho - Ano Novo


«Os anos chegam desprevenidos, sem plano, e começam por tomar informações com os anos que saem. E então, pelas notas colhidas, como um dramaturgo, preparam os seus episódios! Ah! Que diria o Ano Velho, ao partir com as suas malas e as suas rugas, a este Ano Novo que chegava, inexperiente e curioso? Que confidências trocaram, ao encontrar-se nessa misteriosa estrada por onde caminham os dias e os anos, pacientes transeuntes da Eternidade? O Ano Velho recolhia-se: estivera trezentos e sessenta e cinco dias em Portugal: ia enfastiado e embrutecido, percebia-se que ia de cá pela grosseria dos remontes das botas; tinha os dedos queimados do cigarro e trocava o B pelo V; levava o estômago estragado da mesa do hotel; ia ressequido da falta de banhos; palitava os dentes com as unhas; sabia ajudar à missa; assoava-se a um lenço vermelho; perguntava a todo o propósito o que há de novo? E era reformista. Estava alusitanado. - o Ano Novo vinha da frescura do Céu.» (in «As Farpas», Dez. 1871)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

FELIZ NATAL


«Uma das coisas encantadoras que nos traz o Natal são esses lindos livros para crianças, que constituem a literatura de Natal.
Não falo desses extraordinários volumes dourados publicados pelos editores franceses, em encadernações decorativas como fachadas de catedrais, que custam uma fortuna; contêm um texto que nunca ninguém lê e são oferecidos às crianças; mas realmente servem para obsequiar os papás. Os pobres pequenos nada gozam com esses monumentos tipográficos; apenas se lhes permite ver de longe as gravuras a aço, sob a fiscalização da mamã, que tem medo que se deteriore a encadernação; e o resplandecente volume orna daí por diante a jardineira da sala, ao lado do candeeiro vistoso.Em Inglaterra existe uma verdadeira literatura para crianças, que tem os seus clássicos e os seus inovadores, um movimento e um mercado, editores e génios – em nada inferior à nossa literatura de homens sisudos. Aqui, apenas o bebé começa a soletrar possui logo os seus livros especiais (...) É no Natal principalmente que esta literatura floresce. As lojas dos livreiros são então um paraíso. Não há nada mais pitoresco, mais original, mais decorativo, que as encadernações inglesas: e as estampas, as cores leves e agudas, oferecem quase sempre verdadeiras obras de arte, de graça e de humor.» («A Literatura de Natal para crianças» in Cartas de Inglaterra)


sexta-feira, 15 de novembro de 2013

DEPUTADO


«Sim, talvez um dia, com rasteiras intrigas e sabujices a um chefe e à senhora do chefe, e promessas e risos através de redacções, e algum discurso esbraseadamente berrado - lograsse ser ministro. E então? Seria ainda a tipóia pela Calçada de S. Bento, com o correio atrás na pileca branca, e a farda mal feita, nas tardes de assinatura, e os recurvados sorrisos de amanuenses pelos escuros corredores da Secretaria, e a lama escorrendo sobre ele de cada gazeta da oposição... Ah! que peca, desinteressante vida, em comparação de outras cheias e soberbas vidas, que tão magnificamente palpitavam sob o tremeluzir dessas mesmas estrelas! Enquanto ele se encolhia no seu paletó, deputado por Vila Clara, e no triunfo dessa miséria - Pensadores completavam a explicação do Universo; Artistas realizavam obras de beleza eterna; Reformadores aperfeiçoavam a harmonia social; Santos melhoravam santamente as almas; Fisiologistas diminuíam o velho sofrer humano; Inventores alargavam a riqueza das raças; Aventureiros magníficos arrancavam mundos de sua esterilidade e mudez... Ah! esses eram os verdadeiramente homens, os que viviam deliciosas plenitudes de vida, modelando com as suas mãos incansadas formas sempre mais belas ou mais justas da humanidade. Quem fora como eles, que são os sobre-humanos! E tal acção tão suprema requeria o Génio, o dom que, como a antiga chama, desce de Deus sobre um eleito? Não! Apenas o claro entendimento das realidades humanas e depois o forte querer.»
(A Ilustre Casa de Ramires, p. 442, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1999, ed. de Elena Losada Soler)

sábado, 5 de outubro de 2013

A Tentação


«Deixe-me resumir, Teodoro, a morte desse velho Mandarim idiota traz-lhe à algibeira alguns milhares de contos. Pode desde esse momento dar pontapés nos poderes públicos: medite na intensidade deste gozo! É desde logo citado nos jornais: reveja-se nesse máximo da glória humana! E agora note: é só agarrar a campainha, e fazer ti-li-tim. Eu não sou um bárbaro: compreendo a repugnância de um gentleman em assassinar um contemporâneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e é repulsivo o agonizar de um corpo humano. Mas aqui nenhum desses espectáculos torpes... É como quem chama um criado... E são cento e cindo ou cento e seis mil contos; não me lembro, mas tenho-o nos meus apontamentos... O Teodoro não duvida de mim. Sou um cavalheiro: provei-o quando, fazendo a guerra a um tirano na primeira insurreição da justiça, me vi precipitado de alturas que nem Vossa Senhoria concebe... Um trambolhão considerável, meu caro senhor! Grandes desgostos! O que me consola é que o OUTRO está também muito abalado: porque, meu amigo, quando um Jeová tem apenas contra si um Satanás, tira-se bem de dificuldades mandando carregar mais uma legião de arcanjos; mas quando o inimigo é um homem, armado de uma pena de pato e de um caderno de papel branco - está perdido.. Enfim, são cento e seis mil contos. Vamos, Teodoro, aí tem a campainha, seja um homem.»
(in O Mandarim, 1880)

domingo, 29 de setembro de 2013

A PERFEIÇÃO


«Calipso segurou de leve o seu ombro robusto:
-Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses para toda a imortalidade na minha ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos...
Ulisses recuou, com um brado magnífico:
- Oh Deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!
E, através da vaga, fugiu, trepou sofregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícia das coisas imperfeitas!»
(«A Perfeição», 1897 in Contos)

sábado, 24 de agosto de 2013

Paris


«Por aqui nada de novo. Esteve cá Luís Soveral, e fizemos um jantar de Vencidos, com bacalhau, na Maison d'Or. Depois houveram cantigas e danças. Agora está cá o Príncipe [o futuro rei D. Carlos]. Subimos com ele à Torre Eiffel - e sicut licet exclamámos: - «É esplêndido!» A torre não dá para mais do que para uma exclamação - mas essa é de dever, e não lha regateámos.»
(Carta a Oliveira Martins, 27 de Agosto de 1889)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A CIVILIZAÇÃO

«Paris, com efeito, já não é aquela cidade que V. Ex.ª, minha Prima, conheceu ligeira e luminosa. Agora está muito grosseira de aspectos, de modos e de ideias (...)
Até exteriormente perdeu toda a graça e elegância. Nas ruas não se vêem senão homens de camisola de malha e mulheres de calções, pedalando furiosamente em velocípedes: as carruagens já não têm cavalos, são todas automobiles, fazem um barulho horrendo e deitam um cheiro abominável a petróleo: no chão uma lama medonha, que a República não limpa: no céu sempre o tal fumo negro, representando, ao que dizem, um dinheirão: e logo ao começo da tarde é necessário acender uma luz que agora há, de um brilho muito criard, e que ordinariamente mata quem a acende! Já parece o século XXIII! Deus nos dê paciência para aturar a civilização!»
(Carta à Condessa de Sabugosa, 24 de Janeiro de 1897)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Idealismo e Naturalismo



«Ora aqui tens, meu caro concidadão: supõe que tu queres ter na tua sala a imagem de Napoleão I passando os Alpes (estas fantasias são-te permitidas  a parede é tua, e podes cobri-la de escarros ou de figuras imperiais  são cousas que ficam com a tua consciência e com o Deus severo que te -de julgar um dia).  Que fazes tu?  Chamas dois pintores: um que é idealista e que vem com a sua grenha, o seu casaco de veludo e o seu chapéu de aba larga, e outro que é Realista, e que vem, como tu, de chapéu alto, com a sua caixa de tintas debaixo do braço.  Dás-lhes o teu assunto e vais aos teus negócios.
            E aqui está o que se passa na tua ausência sobre a tua parede:
            O pintor idealista arregaça as mangas e brocha-te imediatamente este quadro: um píncaro de montanha; sobre este píncaro um cavalo com as proporções heróicas do cavalo de Fidias, empinado; sobre esse cavalo  premindo-lhe as ilhargas, Napoleão, de braços e pernas nuas, como um César Romano, com uma coroa de loiros na cabeça.  Em volta, nuvens; em baixo, a assinatura.
            Dir-me-hão: é falso! – Como, falso?  Este quadro foi, creio que é ainda, uma das jóias do museu do Luxemburgo.
            Durante esse tempo, o pintor realista, tendo lido a historia, consultado as cronicas do tempo, estudado as paisagens dos Alpes, os uniformes da época  etc., deixou na tua parede o seguinte quadro: sob um céu triste, um caminho escabroso de serra; por ele  resfolegando e retesando os músculos  sobe uma mula; sobre a mula, Bonaparte, abafado em peles  com um barrete de lontra e óculos azuis por causa de reverberação da neve, viaja, doente e derreado...

            Qual destes quadros escolhes tu, caro concidadão? O primeiro, que te inventou a historia ou o segundo, que ta pintou? O idealista deu-te uma falsificação, o naturalista, uma verificação.  Toda a diferença entre o Idealismo e o Naturalismo está nisto.  O primeiro falsifica, o segundo verifica.» (em «Idealismo e Realismo», 1879)

quarta-feira, 31 de julho de 2013

As Agulhas de Cleópatra


«Assim, ao outro dia, fomos também ver, conscienciosamente, as Agulhas de Cleópatra. Encontrámo-las numa horta cercada duma fileira de casas: uma, está de pé, nítida, de granito rosado; as outras jazem, deitadas no chão: em redor, crescem legumes. Aproximei-me, e depois de as ver e de me compenetrar de que tinham pertencido ao templo de Heliópolis, e de que haviam sido trazidas para Alexandria para serem colocadas dentro dum templo dedicado a Ceres, voltei os olhos e bocejei...

Oh!, querida Alexandria, cidade de Cleópatra, de Amru e dos padres da Igreja, como tu nos foste fastidiosa e pesada!» (In «O Egipto – notas de viagem», 1869)

quarta-feira, 17 de julho de 2013

NO SHEPHEARD'S

«Ao sair das ruas estreitas e ruidosas onde se movem aquelas imagens do velho mundo árabe, entramos no Shepheard's Hotel


São sete horas da noite. O gás flameja no largo corredor lajeado; os espelhos cintilam: os drogmen circulam. Um árabe percorre os corredores, batendo numa larga placa de metal, como para o anúncio de um velho rito. Aquele som velado, doce e penetrante, espalha-se num eixo esbatido pelas largas salas. É o jantar.

A imensa sala, adornada de colunas, está cheia de luz; os cristais faiscam; os árabes, os escravos núbios, os criados franceses, servem apressadamente.


 Àquelas mesas estreitas senta-se um mundo bem diferente daquele que se move vagarosamente pelas ruas do Cairo: aqui é o nosso mundo, europeu, civilizado, sábio, filosófico, egoísta e rico. São embaixadores, poetas, engenheiros, lorettes, caricaturistas, pintores, fotógrafos, burgueses, dandies, lords, jornalistas, críticos e agiotas.


O rumor das palavras tem uma tonalidade alegre. Não há o silêncio árabe, fala-se, critica-se, negocia-se, intriga-se, discute-se.
Os sentimentos aparecem sob os gestos polidos: mente-se, contesta-se, e o homem revela-se.»





(em O Egipto, notas de viagem (1869)

quinta-feira, 4 de julho de 2013

O homem moderno





«Já nestas idades modernas, há apenas seiscentos anos, quando não havia esta porção de saber e esta porção de justiça - que teríamos nós sido, nós outros, Jornalistas, Críticos, Políticos, Ministros, Personagens - que teríamos nós sido, não possuindo decerto Castelo no monte, nem Abadia na planície - que teríamos nós sido? - Vilões. Sim, vilões. Vilões hirsutos e bestiais, embrulhados em trapos de estamenha, nutridos de ervas meio-cruas, encafuados em tocas fumarentas, tremendo do homem de armas, tremendo do homem de igreja, pagando para ambos, rezando por ambos, esmagados, vis, mudos, mal distintos do boi e do porco, com a Vida toda vazia de gozos e a Morte toda cheia de terrores, tendo por partilha neste mundo o opróbrio e a forca, e no outro o Demónio com o seu grande espeto em brasa.
Mas distribuiu-se uma pouca de justiça, derramou-se um pouco de saber. E hoje, sem medo dos tiranos e sem medo dos demónios, protegidos pelos nossos Códigos e esclarecidos pelos nossos Compêndios - ah! Bacharéis maganões, como nós falamos de alto!»
("A Europa", 1888, em «Almanaques e outros dispersos», Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011)


sábado, 15 de junho de 2013

EUROPA


«Nestes últimos anos, aqueles que se distinguiram por conhecer as coisas das nações, como dizia o velho escriba egípcio do tempo de Tutmés III, recomeçam a inquietar-se, a levantar o gesto de Cassandra, a gritar sombriamente: - «A situação da Europa é medonha! Sob as crises que a sacodem, toda a máquina se desconjunta! Nada pode deter o incomparável desastre! Este fim do século é um fim de mundo.» E com efeito, se a tão prolongado e triste brado o homem que trabalha, quieto na sua morada, repara mais atentamente na Europa, ela aparece-lhe como uma sala de hospital onde arquejam e se agitam, nos seus catres apertados ou largos, os grandes enfermos da civilização! (...)
Mas mesmo para um humanitário, para um filósofo (sobretudo para esses que vêem mais longe que o curto espaço duma duração de homem) não há neste fim de mundo nada que desole ou mate a esperança. A situação da Europa de facto nunca cessou de ser medonha. Tem-no sido melancolicamente e apaixonadamente todo este século. Foi-o durante todo o século 18, através da maior indiferença e duma maior doçura de vida. Tem-no sido em todos os séculos desde que os Árias aqui chegaram, cantando os Vedas e empurrando os seus rebanhos para Oeste. A "crise" é a condição periódica da Europa.»
(«A Europa» em Almanaques e outros dispersos, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011.)

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A Inglaterra e a França

A Inglaterra e a França (julgadas por um inglês)

"D. José", o cão pug-carlin do narrador, escreve uma carta à gata "Pussy":
«Nós em Inglaterra afirmamos, com a Bíblia apertada contra o coração, e a garrafa de gin escondida debaixo da mesa, que a moralidade dos nossos costumes é superior à de todas as nações do Universo. Tu sabes, "Pussy", como esta pudica afectação nos parece divertida a nós, cães e gatos, testemunhas permanentes da vida íntima, diante de quem os seres racionais, no seu imbecil orgulho e supondo que somos mudos não se dão ao incómodo de ter recato... A Inglaterra é uma pocilga de devassidão. A França é um salão de libertinagem. "Pocilga", "salão", a diferença está aqui. O pecado entre estes amáveis franceses, é amável também; doura-o um estouvamento moço; tem no fundo uma ponta de sentimento ou de sensibilidade; e no beijo mais superficial há sempre bastante emoção para, sendo necessário, fazer uma lágrima. Em Inglaterra o pecado é bruto e cheira a aguardente.» (em Almanaques e outros dispersos, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011)

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Portugal



« - Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes Ramires. E sabem vocês, sabe o Sr. padre Soeiro quem ele me lembra?
- Quem?
- Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Sr. padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?
- PORTUGAL.
(em A Ilustre Casa de Ramires, 1900)

sábado, 8 de junho de 2013

LISBOA

Panorama de Lisboa, ainda com o Passeio Público

(Foto do AFML)

«O ar é na verdade bom. Lisboa tem ainda meiguices primitivas de luz e de frescura: apesar dos asfaltos, das fábricas, dos gasómetros, dos cais, dos alcatrões, ainda aqui as Primaveras escutam os versos que o vento faz: sobre os seus telhados ainda se beijam as pombas: ainda no silêncio, o luar escorre nas cantarias, como o sangue ideal da melancolia. E Deus, ainda não é um poeta impopular. Lisboa que faz? (...)
Sente-se abundante, gorda, coberta de luz. Sente-se protegida, livre, caiada e fresca; não tem de catar as suas misérias nem de amparar o pau das forcas, por isso comenta Sancho Pança. Não tem de construir a catedral das ideias, nem de compor a sinfonia da alma, por isso escuta os melros nas várzeas, e reza as Ave-Marias. Paris, Londres, New-York, Berlim, suam e trabalham, em espírito. Ela não tem que semear, por isso ressona ao sol.» (Na Gazeta de Portugal, 1867. Publicado por Carlos Reis e Ana Teresa Peixinho em «Textos de Imprensa I», Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2004.)

segunda-feira, 3 de junho de 2013

A Imprensa


Eça de Queirós ca. 1870


«Não tem um fim, não persegue a realização de uma ideia, não tem uma vontade pertinaz e lógica: vive do acaso, flutuante, cheia de palavras, ora especulando com o que o espírito público tem de mais trivial, de mais preguiçoso e rotineiro, outras vezes com o que ele tem de mais nobre, com o elemento revolucionário que existe no fundo de todas as consciências. A sua ignorância é deplorável: não conhece os movimentos modernos nem na política, nem na ciência, nem a economia. Vive longe do rumor fecundo das ideias, dos sistemas, isolada no culto dos velhos provérbios idiotas.
As altas questões nacionais, não as compreende, não as conhece, ou apenas conhece as palavras, mas ignora as coisas, as suas aplicações e as suas relações. Não levanta uma questão de ideias, uma questão de filosofia política ou de história; as suas questões são de indivíduos, de nomes (...) e ao fim dum ano um jornal é uma colecção de questões de família - impressas.» 
em «Palavras sobre o Jornalismo Constitucional», 1870 (publicado por Irene Fialho em Almanaques e outros dispersos, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011.)

domingo, 2 de junho de 2013

Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco - Realismo e Idealismo




Caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro

«... cita V. Ex.ª um período da minha carta a Bernardo Pindela nos Azulejos, em que eu alegremente me rio dos discípulos do Romanticismo que, depois de clamarem contra certos escritores com realistas e chafurdadores de lodo, apenas imaginam que o Público só esse lodo apetece para seu consumo intelectual se apressam a escrever na capa dos seus livros - romance realista - para que o Público, aliciado pelo rótulo, os compre também a eles e os leia também a eles... E V. Ex.ª, meu caro confrade, acrescenta com a mais consciente certeza - "Ora isto é comigo!" 
Suponha que um dia, numa novela, V. Ex.ª descreve, com o seu vernáculo e torneado relevo, certo animal de longas orelhas felpudas, de rabo tosco, de anca surrada pela albarda, que orneia e que abunda em Cacilhas... E suponha ainda que, ao ler essa colorida página, eu exclamo, apalpando-me ansiosamente por todo o corpo: "Grandes orelhas, rabo tosco, anca pelada... É comigo!" Que diria V. Ex.ª, meu prezado confrade?
V. Ex.ª balbuciaria aturdido: - "Eu não sei, eu vivo longe... Se as suas orelhas são assim longas, e se o albardão o despelou, há realmente concordância... Mas na verdade creia que, mencionando esse animal venerável, não me raiou no ânimo a mais ténue, remota intenção..." Assim, embaraçado e surpreso, diria V. Ex.ª. E assim eu digo. V. Ex.ª deve conhecer melhor que eu, que sou distraído e vivo longe, as capas dos seus livros...»
(Carta de Eça de Queirós a Camilo Castelo Branco, nunca enviada; publicada por Ana Teresa Peixinho em Cartas Públicas, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2009)

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Inauguração do Canal do Suez


«Do lado oposto aos molhes, para além da cidade, tinham-se construido três pavilhões, estrados tapetados e brasonados, sobre a areia húmida da espuma do mar. Era nesse lugar a celebração religiosa: os ulemas e os padres cristãos deviam abençoar e consagrar nos seus ritos o canal de Suez. Um grande cortejo de convidados, precedidos dos princípes, entre os quais sobressaía a pensativa e bela figura de Abd el-Dader, dirigiu-se para esse lugar, entre duas fileiras de soldados egípcios, de arcos, de bandeiras, e de árabes que abriam grandes olhos.» («De Port Said a Suez», Diário de Notícias, 1870)

Inauguração do Canal do Suez






«Mas naquele dia 17, da inauguração, Port Said, cheio de gente, coberto de bandeiras, todo ruidoso dos canhões e dos hurras da marinhagem, tendo no seu porto as esquadras da Europa, cheio de flâmulas, de arcos, de flores, de músicas, de cafés improvisados, de barracas de acampamento, de uniformes, tinha um belo e poderoso aspecto de vida. A baía de Port Said estava triunfante. Era o primeiro dia das festas. Estavam ali as esquadras francesas do Levante, a esquadra italiana, os navios suecos, holandeses, alemães e russos, os yatchs dos princípes, os vapores egípcios, a frota do paxá, as fragatas espanholas, a «Aigle» com a imperatriz [Eugénia de Montijo], o «Mamoudeb» com o quediva, e navios com todas as amostras de realeza, desde o imperador cristianíssimo Francisco José, até ao caide árabe Abd el-Kader» (em «De Port Said a Suez», Diário de Notícias, 1870)

terça-feira, 21 de maio de 2013

O Grupo dos cinco Sábios fotografados no Palácio de Cristal, Porto

Eça de Queirós, Oliveira Martins, Antero de Quental, 

Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro


No Outono de 1884 Eça de Queirós esteve na praia da Granja com a família da Condessa de Resende. Ali perdeu ao bilhar, com uma banhista - segundo a tradição, D. Emília de Castro Resende, sua futura mulher a aposta de um leque de cetim cor de ouro, ornado de uma aguarela representando um grupo de cinco cães. Segundo Ramalho Ortigão «Uma das condições da aposta era que o leque seria escrito pelos amigos com que Eça de Queirós tinha de vir almoçar ao Porto». No almoço, que teve lugar no Palácio de Cristal, os cinco «sábios», como lhes chamou D. Emília, fizeram-se fotografar e autografaram o leque assumindo as suas frases como sendo Latidos:

«Quem muito ladra pouco aprende» - Antero de Quental
«Escritor que ladra não morde» - Oliveira Martins
«Dentada de crítico cura-se com pêlo do mesmo crítico« - Ramalho Ortigão
«Cão lírico ladra à lua; cão filósofo abocanha o melhor osso» - Eça de Queirós
«Cão de letras - Chachorro!» - Guerra Junqueiro

Envoi

«São cinco cães, sentinelas
De bronze e papel almaço,
De bronze para as canelas,
De papel para o regaço»

Assinado «A matilha»

(Em A Ilustração, 20 de Set. 1885; publicado por Irene Fialho, Almanaques e outros dispersos, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011)


domingo, 19 de maio de 2013

Eça Poeta

Rigolboche, a dançarina de Cancan


Tu serás esqueleto e podridão
Ó Branca, a Rigolboche
Exala as febres e infecção,
Oh flor vil do deboche.

Hoje tens pedrarias e vernizes,
És brancura de cama
Pois serás pasto a vermes e raízes
Sujo lírio da lama.

Hoje és luz e cristal opala e sereia
E branca flor de carne
Pois serás podre suja infecta e feia
E da vil cor do marme.

Repara bem no pó que tu pisares
Nas corridas d’Epson
Tal tu serás cetim dos boulevards
Ó Vénus Benoiton

Hoje queria secar-te nos meus braços
Forte lascivo e torpe
Mas depois fugirei com largos passos
Do teu infecto corpo.

Hoje sem seiva te amo e sofro e espero
Ária calor aroma
Oh, vem ser Messalina  Eu serei Nero
E queimaremos Roma

Mas quando fores p’ra terra apodrecer
Oh graça sensual,
Nunca à vala dos pobres te irei ver
Pelo tempo Invernal

Lá não terás colar veludo arminhos
Luzidios vernizes
Tu que rias dos ramos aonde há ninhos
Chorarás com as raízes.

Não haverá sobre a terra uma flor pura
Que p’ra ti apanhe
Irei cuspir sobre a tua sepultura
Saliva de Champagne.

Irei um dia com Marie la Rife
Musa do macadam
Dançar sobre o pó do teu esquife
Os solos do cancan

E isto será antes que o vento esgalhe
E a triste chuva escorche
O tronco em que diz na mata de Versalhes
Carlos e Rigolboche.

Eu que ainda te amo ó pálida canalha,
Que sou gentil e bom,
Eu mesmo irei vestir-te uma mortalha
Talhada à Benoiton

Carlos Fradique Mendes (i.e. Eça de Queirós), 1869. A publicar em A correspondência de Fradique Mendes, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Junho de 2013 (Edição Crítica de Carlos Reis, Irene Fialho e Maria João Simões)

Contra as condições de trabalho dos Colonos Chineses

Colonos Chineses trabalhando numa plantação de cana de açúcar em Cuba


«Os colonos trabalham desde a alva (4 ou 5 da manhã) até Avé-Maria (7 ou 8 da tarde) tendo um descanso no meio do dia de 2 horas: mas na força dos trabalhos há engenhos em que o colono trabalha das 4 da manhã às 11 da noite! O castigo ordinário é o cepo - e às vezes as algemas - com as quais todavia - trabalham! (...) Assim é, Exm.º Sr., que em todos os exemplos da servidão humana - eu não conheço - a não ser o fellah no Egipto e na Núbia - ninguém mais infeliz que o coollie. E se a justiça não é uma mera categoria de razão - a condição dos colonos na América central não é compatível com a dignidade desta época.» (Carta ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros João Andrade Corvo, Havana, 17 de Maio de 1873)

Contra as condições de transporte dos imigrantes Chineses

Barco com carregamento de imigrantes Chineses


«Se atendermos agora às condições mesmas da sua existência só há motivos de condenação. Em primeiro lugar - apesar do Regulamento de Macau - o transporte dos coollies não tem boas condições. (...) a maior parte das vezes são transportados com um rebanho sofredor (...) Os jornais costumam anunciar os preços dos colonos, como uma mercadoria. E assim "vendido", o colono entra nas misérias dos Engenhos.» (Carta ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros João Andrade Corvo, 17 de Maio de 1873)

Protector dos colonos Chineses em Cuba

Chineses trabalhando em regime de servidão


«O aspecto que no começo deste ano apresentava a existência e condição dos colonos asiáticos era verdadeiramente desgraçado: mais de oitenta mil colonos, sem protecção e sem direitos, estavam - pelo facto de uma legislação tirânica - abandonados à exploração dos proprietários, à arbitrariedade das autoridades, às extorsões da polícia e às exigências dos Ayuntamientos. O Consulado de Portugal, apesar do seu zelo, não podia modificar este estado de injustiça: ainda que o Regulamento de Emigração do Governo de Macau tenha posto sob a protecção do consulado todos os colonos saídos por Macau (...) hoje estas condições começam lentamente a modificar-se e em muitos casos reclamações dos cônsules de ordem administrativa ou política têm sido atendidas.» (Carta ao Ministro e Secretário dos Negócios Estrangeiros João Andrade Corvo, Havana, 17 de Maio, 1873)

sábado, 18 de maio de 2013

Nova Iorque, 1873

«Se você sai do seu hotel e encara algumas das ruas grandes de New York fica aterrado: - aquela agitação, estrondo, ruído, febre, rostos consumidos e secos, toilette únicas, carruagens nos passeios, ónibus aos lados, caminhos-de-ferro por cavalos no centro da rua, caminhos-de-ferro a máquina por cima das ruas, junto aos tectos das casas, o aparato imenso da polícia, a excentricidade dos anúncios, - o rumor apressado de todo o mundo, - compreende logo - que está num povo bárbaro que aprendeu a civilização de cor. Mas bárbaro como é - que força, que originalidade inventiva, que perseverança, que firmeza!» (Carta de Eça a Ramalho Ortigão, 20 Jul. 1873)

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Cataratas do Niágara, 1870

«O Niágara sacudiu-me porque eu estava só e descontente: se estivesse com um amigo - consideraria que o Niágara é simplesmente um rio que desaba - e não teria extraído daquela circunstância natural e geológica outras imagens e outras sensibilidades. Mas como estava só - a paisagem infinitamente doce, vasta e plana das margens daquele rio sagrado na religião dos índios, o mesmo facto da queda do rio - aspecto horroroso e singularmente cativante - a beleza divina das pequenas ilhas que estão justamente no ponto em que o vasto rio cai na largura de duas milhas (!) pequenas ilhas cheias de bosques de flores, de sombras de graça e de claridade, no meio da demência pavorosa da Queda - tudo aquilo - me fez passar uns dias excessivamente nervosos e romanescos...» (Carta de Eça de Queirós a Ramalho Ortigão, Montreal, 20 Jul. 1873)

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Autógrafo de Eça de Queirós no Leque da 

Viscondessa de Cavalcanti

Publicado por Irene Fialho em Almanaques e Outros Dispersos, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011.

Leque da Viscondessa de Cavalcanti

Leque da Viscondessa de Cavalcanti, guardado no Museu Mariano Procópio na cidade de Juiz de Fora, estado de Minas Gerais, Brasil. Nele Eça de Queirós escreveu:
«Este velho e tão louvado aforismo - a Mulher, na sua beleza, é mais forte que um exército posto em batalha - foi certamente escrito por Salomão no leque de pergaminho e sandalo da Rainha de Sabá. Paris, 11 de Março de 1891»