sábado, 8 de junho de 2013

LISBOA

Panorama de Lisboa, ainda com o Passeio Público

(Foto do AFML)

«O ar é na verdade bom. Lisboa tem ainda meiguices primitivas de luz e de frescura: apesar dos asfaltos, das fábricas, dos gasómetros, dos cais, dos alcatrões, ainda aqui as Primaveras escutam os versos que o vento faz: sobre os seus telhados ainda se beijam as pombas: ainda no silêncio, o luar escorre nas cantarias, como o sangue ideal da melancolia. E Deus, ainda não é um poeta impopular. Lisboa que faz? (...)
Sente-se abundante, gorda, coberta de luz. Sente-se protegida, livre, caiada e fresca; não tem de catar as suas misérias nem de amparar o pau das forcas, por isso comenta Sancho Pança. Não tem de construir a catedral das ideias, nem de compor a sinfonia da alma, por isso escuta os melros nas várzeas, e reza as Ave-Marias. Paris, Londres, New-York, Berlim, suam e trabalham, em espírito. Ela não tem que semear, por isso ressona ao sol.» (Na Gazeta de Portugal, 1867. Publicado por Carlos Reis e Ana Teresa Peixinho em «Textos de Imprensa I», Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2004.)

segunda-feira, 3 de junho de 2013

A Imprensa


Eça de Queirós ca. 1870


«Não tem um fim, não persegue a realização de uma ideia, não tem uma vontade pertinaz e lógica: vive do acaso, flutuante, cheia de palavras, ora especulando com o que o espírito público tem de mais trivial, de mais preguiçoso e rotineiro, outras vezes com o que ele tem de mais nobre, com o elemento revolucionário que existe no fundo de todas as consciências. A sua ignorância é deplorável: não conhece os movimentos modernos nem na política, nem na ciência, nem a economia. Vive longe do rumor fecundo das ideias, dos sistemas, isolada no culto dos velhos provérbios idiotas.
As altas questões nacionais, não as compreende, não as conhece, ou apenas conhece as palavras, mas ignora as coisas, as suas aplicações e as suas relações. Não levanta uma questão de ideias, uma questão de filosofia política ou de história; as suas questões são de indivíduos, de nomes (...) e ao fim dum ano um jornal é uma colecção de questões de família - impressas.» 
em «Palavras sobre o Jornalismo Constitucional», 1870 (publicado por Irene Fialho em Almanaques e outros dispersos, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011.)

domingo, 2 de junho de 2013

Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco - Realismo e Idealismo




Caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro

«... cita V. Ex.ª um período da minha carta a Bernardo Pindela nos Azulejos, em que eu alegremente me rio dos discípulos do Romanticismo que, depois de clamarem contra certos escritores com realistas e chafurdadores de lodo, apenas imaginam que o Público só esse lodo apetece para seu consumo intelectual se apressam a escrever na capa dos seus livros - romance realista - para que o Público, aliciado pelo rótulo, os compre também a eles e os leia também a eles... E V. Ex.ª, meu caro confrade, acrescenta com a mais consciente certeza - "Ora isto é comigo!" 
Suponha que um dia, numa novela, V. Ex.ª descreve, com o seu vernáculo e torneado relevo, certo animal de longas orelhas felpudas, de rabo tosco, de anca surrada pela albarda, que orneia e que abunda em Cacilhas... E suponha ainda que, ao ler essa colorida página, eu exclamo, apalpando-me ansiosamente por todo o corpo: "Grandes orelhas, rabo tosco, anca pelada... É comigo!" Que diria V. Ex.ª, meu prezado confrade?
V. Ex.ª balbuciaria aturdido: - "Eu não sei, eu vivo longe... Se as suas orelhas são assim longas, e se o albardão o despelou, há realmente concordância... Mas na verdade creia que, mencionando esse animal venerável, não me raiou no ânimo a mais ténue, remota intenção..." Assim, embaraçado e surpreso, diria V. Ex.ª. E assim eu digo. V. Ex.ª deve conhecer melhor que eu, que sou distraído e vivo longe, as capas dos seus livros...»
(Carta de Eça de Queirós a Camilo Castelo Branco, nunca enviada; publicada por Ana Teresa Peixinho em Cartas Públicas, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2009)